Depois de percorrer 20 cidades observando as
eleições municipais, é hora de refletir, com base nos resultados das urnas. Não
se trata de analisar o desempenho de um candidato ou partido, mas tendências
mais amplas.
Uma das impressões que transmiti em minhas notas
era a de que estava diante das eleições mais frias do pós-ditadura. O fosso
entre os políticos e os eleitores chegava a um ponto decisivo, completando o
ciclo de decepções com o abandono das promessas de mudança trazidas pelo PT em
2002. Esse fosso não poderia ser encurtado magicamente pelo julgamento do
mensalão, que serve apenas para cicatrizar algumas feridas. A retomada da
confiança no processo político precisaria de mais tempo e de novos atores para
emergir. Se o PT está na raiz da decepção, como explicar que o partido tenha
crescido 12% em relação às eleições de 2008?
Os índices de abstenção e de votos nulos, sobretudo
no Rio de Janeiro, que foram superiores ao peso da oposição somada, indicam que
ao menos um a cada três eleitores jogou a toalha. No caso do Rio pesou a
previsão das pesquisas de que o prefeito Eduardo Paes seria reeleito com larga
margem. Pode ser que muitos eleitores tenham sentido que seu voto era
desnecessário. Em São Paulo a disputa foi acirrada e nem esse argumento pode
ser invocado.
Em Guapimirim, na Serra Fluminense, uma das menores
cidades que visitei, o processo de desencanto era mais nítido. Não se revelava
somente na frieza dos eleitores, mas na vontade de alterar a cultura política.
Ali o prefeito foi detido por algumas horas, o presidente da Câmara Municipal
fugiu e a candidata oficial estava na cadeia. Numa cidade com 56 mil
habitantes, foram acusados de desviar R$ 48 milhões de recursos públicos.
Pelas ruas desfilavam dois movimentos: um, dos
políticos com seus cabos eleitorais pagos, foguetes e jingles; o outro, de
moradores protestando contra a corrupção, condenando a venda de votos e
anunciando um conselho independente para examinar as contas da cidade. Era um
grupo de 200 pessoas com faixas e cartazes, algumas empurrando carrinhos de
criança. Lutavam pela transparência e interpretavam nas ruas um sentimento que
em muitos lugares foi vivido em silêncio. A luta pela transparência,
teoricamente, nem precisava existir, pois há uma lei que a garante. Mas todos
sabiam que é preciso mover-se, senão o desvio de verba pública jamais será
efetivamente combatido.
Os partidos comportam-se como se nada estivesse
acontecendo. Limitam-se a computar seus ganhos numéricos, sem perceber que são
proporcionais aos gigantescos recursos financeiros que acionaram,
principalmente o PT. A impressão, comprovada pelo desinteresse dos que não
votaram, é de que o fosso pode aumentar. Para a política convencional, isso não
importa. Seu foco são cargos e orçamentos públicos. O objetivo é crescer, ainda
que num universo político em contração, pela retirada maciça de eleitores
desencantados. Olham para a luta contra a corrupção e pela transparência como
uma expressão minoritária, o que é verdade. Nem todas as causas começam
empolgando multidões.
Numa cidade menor ainda, Tiradentes, constatei algo
que questiona a importância das grandes máquinas partidárias. Algumas campanhas
vitoriosas no Brasil confirmam a inoperância de partidos políticos como
estruturas hierarquizadas e centralizadas. São campanhas, como a dessa cidade
mineira, realizadas por redes em que o partido é apenas um ponto de múltiplas
interações. Novas ideias, diversidade de iniciativas, troca de informações,
tudo ocorre num espaço mais amplo e arejado do que as máquinas partidárias. As
chamadas cidades de transição serão impulsionadas mais pela inteligência
coletiva do que por um grupo partidário, muitas vezes interessado só em se perpetuar
no poder.
Neste momento é um pouco romântico argumentar com
causas minoritárias e exemplos de pequenas cidades. São, no entanto, indicações
de como expandir o universo da política. A maneira como foi celebrado o
ministro Joaquim Barbosa no momento em que foi votar mostra que a luta dos
moradores de Guapimirim tem relação com as aspirações de grande parte dos
brasileiros. E a geleia geral das alianças partidárias é um dinossauro
comparada com as redes sociais que constroem algumas campanhas vitoriosas.
Nelas não se discute como distribuir cargos, mas como realizar objetivos
compartilhados.
O nível de abstenção é uma alerta. Experiências
fragmentárias indicam que as coisas se estão movendo sob a superfície da
chamada grande política. Não são apenas os que se abstiveram que abandonaram o
processo político. Muitos votaram com a sensação de cumprir um enfadonho dever
burocrático. Para outros, a urna eletrônica parecia a porta do inferno: deixai
toda a esperança, ó vós que apertais a tecla "confirma".
O número de eleitores que votaram nulo no Rio foi
maior que a soma de votos dos candidatos do PSDB e do DEM, partidos de
oposição. Ao cabo do primeiro turno das eleições municipais, além da
estrepitosa discussão sobre quem ganhou e quem perdeu, é preciso dedicar um
pouco de espaço a interpretar o silêncio dos ausentes no pleito e ao esforço
dos que buscam saídas para um reencontro, como os manifestantes de Guapimirim.
Haverá tempo para que tudo isso amadureça a tempo
de reconciliar as eleições nacionais de 2014 com a ideia de esperança? Não é
possível fixar prazos em processos que têm seu ritmo próprio. Aos meus olhos,
um certo mundo está acabando e as alternativas começam a ensaiar seus primeiros
passos.
Sei que essa frase vale para uma multiplicidade de
situações. Mas é apenas uma leitura do primeiro turno das eleições municipais.
Foi o que vi ao longo das viagens debatendo propostas para uma cidade mais
humana, sustentável e inteligente. Um debate bom para o segundo turno. Mais
tempo, menos gente, as condições agora, em teoria, pelo menos, são melhores
para descobrir que proposta de cidade os partidos nos oferecem.
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